Há poucos dias atrás assolada por uma greve da população mais desfavorecida da cidade de Maputo, em virtude de uma série de aumentos nos preços de bens essenciais, (se calhar na Coca Cola também), veio á estampa as grandes dificuldades porque passam todos os dias as pessoas que vivem e trabalham na cidade e arredores da capital moçambicana!
O relato que abaixo transcrevo publicado por um jornal português na voz da jornalista Sofia Loreno, mostra de uma maneira quase surrealista como é na verdade a aventura de viajar pelas ruas da cidade rumo aos seua afazeres... Leiam!
(...)À volta de Maputo vivem dois milhões de pessoas e quase todas trabalham ou estudam na cidade. Os transportes públicos, TPM, Transportes Públicos de Maputo, quase não existem, e nasceu por isso uma rede informal de "chapas" - podem ser carrinhas de nove lugares onde cabem 25 pessoas, incluindo duas ao lado do motorista, ou miniautocarros com uma lotação de 29, uma fila de um lugar do lado esquerdo; outra de dois no lado direito, onde cabem umas 70 pessoas, bem apertadas. É assim que esses dois milhões se movem, para lá e para cá.
Muitas mulheres vão para o centro da cidade vender nos mercados (Benoit Marquet/AFP)
5h15
Leonora, casada com um homem que já tinha dois filhos de outra mulher, mãe de outro, vive na Mahota, para lá de Magoanine, para lá do aeroporto, depois do bairro de Xiquelene. Veste uma T-shirt cor-de-laranja, uma capulana e uma touca que é tecido e acaba com um nó a tapar-lhe as trancinhas.
Já está a pé, a encher um balde de água na torneira que tem no quintal da sua casa de tijolo cinzento e cimento, tecto de chapa com uma rudimentar estrutura de madeira, três quartos mais a sala que tem sofás novos e outros velhos, o armário da loiça, a mesa e a televisão pequena, pousada num armário de ferro preto e dourado que mais parece a cabeceira de uma cama.
Leonora começa o dia a lavar a loiça do jantar, em pé, de costas dobradas. Tudo muito bem esfregado à mão e passado de um alguidar para outro, pratos, talheres, copos, tachos e ela a sorrir.
Ainda é noite, mas o céu vai ganhando tons de azul-petróleo desmaiado. Leonora tem uma lâmpada acesa no alpendre de cimento onde funciona a cozinha: dois lumes de madeira e ferro.
A casa mais próxima não tem quintal nem alpendre, mas a luz por cima da porta azul de ferro também já está acesa. Sai um homem de calças e pólo vermelho escuro que ainda há-de entrar e sair de toalha e reentrar em tronco nu e voltar a sair com outra roupa e o filho pronto para ir para a escola.
Há uma boa meia hora que o som dos galos ecoa por todo o lado. Leonora anda à volta de um tacho que pegou no fundo e ela raspa com a mão, de pé curvada, pernas levemente abertas para conseguir raspar melhor o tacho.
5h35
Começam a chegar vozes que não são de animais. O céu já é quase cinzento e descobrimos que atrás do muro da casa de Leonora há mais uma casa abarracada de madeira. Alguém ouve música bem longe. A Mahota é grande, muito grande. Cheia de casas de tijolo e de ruas de areia e sem luz, aqui e ali restos das queimadas dos protestos da semana passada. Mas não perto da casa de Leonora, que fica a uns 15 minutos em passo rápido da estrada onde nos deixara o "chapa" que vai do Xiquelene a Magoanine.
No quintal de Leonora há uma divisão de caniço alto embrulhado numa lona que parece tecido de tenda, cinzento metalizado por fora, roxo por dentro, a ver-se numa ponta a cair. O sobrinho do marido de Leonora, que é, como o tio, natural "da ponta Norte do país", ao contrário de Leonora, que é de Maputo, aparece para dizer bom-dia e lavar os dentes cá fora, antes de sair para a cidade.
A torneira já se fechou e ainda há água no balde amarelo que já foi de 20 litros de Meteor PVC e agora está ali, em cima de umas pedras para não estar na terra e na pedra. E ela a lavar os dentes, em frente ao caniço e à lona.
Já é dia o suficiente para se ver que o céu está nublado, como na véspera, quando chegou a chuviscar. É Inverno em Maputo e nem sempre estão 24 graus e até está vento e vestem-se casacos de malha e cachecóis e até gorros nesta manhã.
5h56
Escolhemos o caminho mais perto até aos "chapas", para evitar de novo o labirinto de casas e de areia que percorremos na véspera, à chegada, pelas 20h40, à casa de Leonora.
Demoramos pouco a deixar a areia e a chegar a uma estrada larga, de um lado a Mahota de onde saímos, do outro uma zona nova que nasceu depois das últimas cheias e onde entretanto gente com mais dinheiro, funcionários, já construiu casas maiores no meio dos arbustos. Esta estrada também tem restos das queimadas dos protestos contra o aumento dos preços do combustível, da água, da luz, do pão e do arroz que na terça-feira, véspera de se cumprir uma semana das manifestações em que morreram 13 pessoas, o Governo decidiu congelar.
6h08
Ao fundo está a primeira fila para os "chapas", com umas 35 pessoas já atrás umas das outras, em curva, quase a entrar para um quintal. Há três bebés nesta fila, nas costas das mães, presos por capulanas ou mantinhas cor-de-rosa."Toda esta população vai para a Baixa prostituir-se", diz um senhor na fila. Em vez de falar contra o Governo, zanga-se com os donos dos "chapas", que se queixam do preço do combustível e querem cobrar mais, apesar do serviço assustadoramente mau que fornecem.
6h15
Pára o primeiro "chapa", que indica no vidro fazer o percurso A. Aviador-Magoanine (o A é de Anjo, nome de um café do tempo colonial). A fila que entretanto já tem mais de 50 pessoas lança-se como um enxame, mas nem todas conseguem lugar. Nós esperamos pelo seguinte, que vem já aí.
O enxame volta a lançar-se e nem se percebe como, mas entramos. O senhor que faz de cobrador, arrumador e angariador só deixa entrar gente com dinheiro trocado, cinco meticais a viagem, e gente disposta e empurrar os vizinhos. "Cabe mais. Olha aí tanto espaço."
Ficamos de pé ao lado (que é como quem diz em cima) de Xandinho e Xandinho tem dois meses e a cabeça de fora da capulana enrolada ao pescoço da mãe, Lena, que vai para o mercado vender e enquanto vai dá de mamar a Xandinho, que tem olhos grandes e uma cabeça enorme para a idade e mama com gosto. Lena vai quase em cima de outro bebé, ao colo da mãe, esta sentada, no primeiro lugar a seguir à porta. Lena agarra-se com uma mão num dos dois tubos de metal que saem do tecto e da parte lateral do "chapa".
A lotação é de 29 pessoas, mas aqui não vão menos de 70. Como, não se explica. Indo. Com respeito pelo vizinho do lado e pedidos de desculpa e senhores que se oferecem para levar as pastas dos outros porque têm a sorte de ter um lugar sentado.
Na rádio canta o angolano Fernando Santos:
"Moçambique, eu hei de voltar um dia
Moçambique, o teu povo tem encanto
Moçambique é maningue [muito] nice"
O coro feminino canta "Moçambique, Moçambique", enquanto Santos repete cinco vezes "Moçambique é maninguenice".
Saímos no Xipamanine e Lena continua.
6h35
Os "chapas" na rotunda do Xipamanine passam cheios. O Xipamanine já acordou. Já há gente a vender e muito pouca a comprar. Passam senhoras com sacos de cimento e sacos de alfaces. Decidimos andar dez minutos a pé, pela estrada principal, para apanhar o "chapa" seguinte, mais à frente. Passamos por dois carros de mão com bananas lindas e pequeninas. Atrás um letreiro indica que aqui é a Bananalândia.
Quando voltamos a parar, as filas na estrada para apanhar os "chapas" são longas. Já não são bem filas aqui, são amontoados de gente. Há "chapas" como aquele de que saímos e também há carrinhas de caixa aberta, que estão proibidas mas não deixam por isso de fazer o percurso para o Museu. Pára a primeira e dezenas de pessoas correm: as primeiras sentam-se de um lado e de outro, as seguintes ficam de pé, em filas que se sustêm umas às outras, entre quem ficou sentado. Entram umas 50 pessoas para a parte de trás de cada carrinha.
6h45
Apanhámos novo "chapa", igual ao anterior, miniautocarro com lotação de 29 lugares. Museu-Malhazine. No vidro de trás está um autocolante do SLB, mas o arrumador, angariador e cobrador, que aqui é mais do que isso, é uma espécie de milagreiro, tem uma camisola da selecção de Itália. Calções e sapatos nos pés, que ele sabe bem onde e como trabalha.
"Tu, menino, vai para o colo daquele senhor. Tu aí, de camisola de festa, chega-te para lá. A menina vire-se para trás. Tanto espaço... Cabe muito mais gente. Este povo está aflito. Tem de ir trabalhar", diz Paulinho, enquanto sai e pelas janelas abertas tenta arrumar pessoas, puxa umas e empurra outras, até conseguir o impossível, que toda a gente pise toda a gente, que toda a gente caia para cima de toda a gente, que toda a gente vá de lado, com as costas a entrar pelos tubos de metal, com a cara enfiada nas costas de alguém, com um cotovelo nas costelas, e ainda a sorrir. Aqui não se vê nem o chão nem o tecto, já. Mas o chão, percebe-se, não é direito, tem buracos e altos. Mais à frente, nova paragem, novo puxa-e-empurra. As pessoas lançam-se, agarrando-se ao telhado e o "chapa" treme mesmo, parece que vai virar mas não vira. Ninguém vai com as pernas direitas, na vertical, toda a gente segue torta quase a cair mas não cai, que não tem espaço. O senhor que leva o menino ao colo diz meio a sério, meio a brincar: "Este aqui não paga." Há muitos meninos de calções e de camisa, mochila às costas. Têm moedas na mão para pagar o "chapa". Riem-se e agarram-se uns aos outros, vão ao colo uns dos outros.
Pedro tem 49 anos - "Tenho de chegar a 12 de Janeiro para fazer 50" -, uma mulher que fica em casa, seis filhos e duas netas, filhas do mais velho, 26 anos e guarda da presidência, treinado pelas tropas da cooperação portuguesa.
Pedro não é dos habitantes da periferia que mais andam para chegar ao trabalho, no centro. Basta-lhe sair de casa às 6h45 para chegar às 7h30. "É assim, nestas condições. Isto é Moçambique."
São 7h20 quando Pedro sai do "chapa", mesmo ao lado do portão do seu trabalho. O "chapa" está quase vazio, os miúdos ficaram lá atrás, na escola ao pé da paróquia luterana. Às 7h30, o"chapa" pára perto da Cristal, a pastelaria de esquina na Avenida 24 de Julho. Paulinho continua a viagem, agora mais calmo, com menos gente para arrumar no "chapa".
Na rua, à porta do Polana Shopping Center, uma senhora comenta com um senhor: "Hoje não há greve, está tudo a andar."
O dia vai estar frio, como a véspera, que foi feriado, aniversário da assinatura dos Acordos de Lusaca. Ao final do dia, Lena e Pedro vão voltar para as suas casas de tijolo, palha, pedra ou zinco, nos subúrbios. Com as centenas de milhares de pessoas que vieram para trabalhar nas casas dos brancos, nas repartições públicas, para varrer canteiros de terra, para vender nos mercados, para cozinhar nos restaurantes.
Ao final do dia a viagem pode demorar mais. As pessoas trocam menos de "chapa" porque já não têm a responsabilidade de chegar a horas e assim poupam meticais. Quando dá. Na terça-feira à noite, quando fomos do centro para a Mahota, apanhámos um "chapa" até ao Xiquelene e depois outro até Magoanine. Curioso é que o outro era o mesmo, largou-nos numa rotunda e apanhou-nos noutra, com o cobrador e angariador a gritar por outra paragem. É comum. Fazem meio percurso de cada vez e cobram a dobrar.
Entre "chapas", na rotunda do Xiquelene, às 20h de terça-feira, havia muita gente nas ruas. Uma fogueira no chão e espetadas de frango bem cheirosas a grelhar. Pelo caminho, depois, já de "chapa", muitos cafés com gente à porta. "Assa-se carne", joga-se bilhar, bebe-se cerveja.
O "chapa" era dos pequenos, carrinha de nove lugares onde cabem 25, dois ao lado do condutor, mas só ia meio cheio. Fomos ao lado do condutor a ouvir na rádio a missa de um pastor brasileiro.
20h05:
no Xiquelene, um dos epicentros dos protestos da semana passada, ao lado de um dos armazéns mais vandalizados, o cobrador grita "Magoanine, Magoanine", parece um pato e o "g" parece "p" de tanta repetição. A zona da Hulene e gente a beber ao lado de uma banca que vende doces. Três adolescentes de jeans, chinelos e blusas largas dançam a um canto. Há muito lixo entre as faixas da estrada.
20h09:
Há polícia militar no meio da estrada. Muita. Foi um acidente. Logo a seguir há a Igreja Mundial do Poder de Deus. A estrada é longa, em dias normais demora-se uns 30 minutos a percorrê-la, por causa de um semáforo num cruzamento, mas, como é feriado, o trânsito é quase inexistente. Ao nosso lado pára um "chapa" cheio, gente sentada ao colo de gente. Vira para a direita, nós seguimos em frente. Passamos pela Igreja da Imaculada Conceição.
O condutor comenta a condução de alguém que passa em sentido contrário. "Está grosso ou quê?" (…)
PARA TODOS AQUELES QUE SE QUEIXAM DOS NOSSOS TRANSPORTES PUBLICOS!
PRECISAVAM DE PASSAR UNS DIAS EM MAPUTO A VIAJAR NOS "CHAPAS"!!