MEMÓRIAS DA INFÂNCIA... A LISBOA!
Houve na minha infância uma personagem que sempre me marcou, pela maneira como viveu e morreu, sempre em níveis de pobreza e exclusão e que se fazia notada lá onde morava como uma pessoa conflituosa. Amiga da pinga e alvo preferencial da pequenada nas suas brincadeiras e eram famosas as suas imprecações à miudagem (nas quais eu por vezes entrava) e acabavam em corridas cautelosamente feitas para escapar à fúria verbal da Lisboa!
Vivia numa barraca junto aos quintais de umas casas e durante o dia o tempo era passado a pedir pelas redondezas e acabava quase invariavelmente num estado de embriaguês na sua barraca! Se ninguém a "xingasse" ela também ia passando, nas suas lamúrias direccionadas não sei bem a quem.
Todos os anos fazia uma coisa extraordinária: Por alturas de Maio, antes do dia 13, ela abalava lá do lugar para uma caminhada a Fátima, a pé (segundo constava) até ao santuário e voltava sempre ao seu lugarejo, contando ás vizinhas as suas peripécias da viagem anual!
A Lisboa tinha uma característica física que nunca mais esqueci: Uma das pernas era mais grossa que outra e tinha sinais de alguma vez ter sido partida, ou alvo de uma intervenção cirúrgica, e era o que se dizia lá no sítio, que era uma das razões da peregrinação anual a Fátima!
Agora à distância de quase 50 anos impressiona este hábito com laivos de religiosidade! Na altura eu e os meus companheiros de brincadeiras teríamos à volta dos 10 anos (portanto entre os anos 1957 /1962, por aí) e lá na freguesia toda a gente conhecia a Lisboa e o seu mau génio!
Mas uma coisa que registei na minha mente com mais impressão era uma frase que ela utilizava muitas vezes e sempre que estava com os níveis mais altos em termos de álcool: Dizia ela aos 4 ventos e repetidamente: EU CHAMO-ME LISBOA E SOU FILHA DA PALMIRA BASTOS!
Na altura na minha cândida ignorância juvenil tal como os meus companheiros, não ligávamos nenhuma àqueles desabafos...era apenas uma das facetas da sua maneira de estar e de nos tentar escorraçar e impedir que nós por perto dela passássemos!
Numa noite, estando nós "putos" na nossa reunião de grupo e nas brincadeiras de polícias e ladrões, ouve-se alguém dizer: venham ver, a Lisboa foi atropelada e está ali na rua caída! Já chamaram a ambulância! Pelos vistos ao tentar atravessar a estrada, já de noite, um carro atropelou-a e sendo transportada ao hospital, veio-se a saber depois que acabou por morrer daquela maneira inglória...desfecho este por volta de 1962/63,por aí.
Muitas vezes tenho pensado nesta personagem real da minha infância... e já mais adolescente, sempre que via na televisão peças de teatro em que a artista fosse Palmira Bastos, me lembrava daquela que personificou uma figura intrigante lá no lugar onde brinquei aos polícias e ladrões, e a Lisboa era a vítima potencial das nossas brincadeiras... e aquela frase repetida até à exaustão...CHAMO-ME LISBOA E SOU FILHA DA PALMIRA BASTOS!...Mistérios de vidas insondáveis...ou talvez não!
1 comment:
Histórias que nos marcam..e quando somos crianças há coisas que ficam para sempre!
beijinho
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